Por Samuel Costa Menezes
Nos últimos tempos, o sistema de justiça criminal brasileiro tem convivido com deformações que desafiam qualquer lógica jurídica ou ética. Uma das mais graves e, infelizmente, mais recorrentes é a transformação da prisão preventiva em instrumento de punição antecipada, mesmo quando ela nasce de um flagrante forjado.
Parece absurdo, mas é real. Em Rondônia, um caso que ganhou notoriedade na imprensa local revelou o que chamo de mutação teratológica da prisão preventiva: uma anomalia jurídica que se alimenta da omissão do Estado e da complacência das instituições.
O episódio começou com uma prisão em flagrante nitidamente forjada uma encenação travestida de legalidade. O investigado foi apresentado como autor de crime que, na prática, jamais ocorreu nas circunstâncias narradas. Mesmo assim, a prisão foi mantida e, de forma quase automática, convertida em preventiva, sem que houvesse fundamentação concreta, como exige o artigo 312 do Código de Processo Penal.
O limbo da competência e o silêncio do Judiciário
O caso ainda ganhou contornos mais dramáticos quando, após um despacho auricular com um Desembargador, houve declínio de competência: como um dos crimes imputados era peculato, o processo foi redistribuído a órgão superior. Desde então, silêncio absoluto. Nenhuma decisão, nem para manter nem para revogar a prisão em 15 dias.
O resultado? O investigado continua preso, sem um único despacho judicial.
A liberdade de um cidadão segue tolhida, não por decisão fundamentada, mas por inércia processual.
É o retrato perfeito da falência de um sistema que parece ter esquecido que a liberdade é a regra e a prisão, a exceção. Quando o Estado prende e simplesmente “esquece” de reavaliar a legalidade dessa prisão, o que se instala é o caos jurídico e a Constituição vira mera peça decorativa.
Presunção de inocência: um princípio em coma
A presunção de inocência, inscrita no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, deveria ser o farol de qualquer decisão que envolva a liberdade humana. No entanto, em casos como este, ela se torna apenas uma lembrança distante, um princípio relegado ao rodapé da prática forense.
Hoje, a regra é simples: prende-se primeiro, justifica-se depois ou, pior, não se justifica nunca.
A prisão preventiva, que deveria servir apenas para garantir o andamento do processo, converte-se em uma pena disfarçada, aplicada antes de qualquer julgamento.
Essa lógica perversa fere não apenas o texto constitucional, mas o próprio sentido de civilização. Um Estado que prende sem decisão e que mantém alguém encarcerado por omissão é o mesmo que renuncia à sua legitimidade moral.
A mutação teratológica da prisão preventiva
Chamo de mutação teratológica essa deformação da prisão preventiva que nasce de um flagrante forjado e se perpetua sem decisão judicial. O termo “teratológico”, no Direito, designa aquilo que é monstruoso, anômalo, inaceitável e nada define melhor uma prisão que sobrevive à margem da lei.
Essa aberração transforma a exceção em regra, o provisório em permanente, o controle judicial em ficção.
Quando o Estado permite que alguém permaneça preso sem despacho, ele não apenas viola o devido processo legal, ele desmoraliza o próprio conceito de Justiça.
Não há neutralidade diante da omissão
O silêncio do Judiciário não é neutro. Quando o juiz não decide, ele decide, decide pela continuidade da prisão, pela perpetuação da violação, pela manutenção da arbitrariedade.
A omissão, nesse contexto, é cumplicidade.
O Direito não pode se calar diante dessas distorções. Advogados, magistrados, promotores, professores e estudantes de Direito precisam compreender que defender garantias não é defender criminosos, mas defender o único escudo que separa o Estado de Direito do autoritarismo.
A liberdade não pode depender da sorte
O caso rondoniense é apenas um retrato de um problema nacional: prisões ilegais que se perpetuam, investigações sem controle judicial e processos paralisados por entraves burocráticos.
Mas cada caso desses tem um rosto, uma família, uma vida suspensa pela omissão estatal.
Enquanto a prisão preventiva continuar sendo tratada como solução automática e não como medida excepcional, continuaremos produzindo injustiças em série.
E é preciso dizer, com toda clareza: prisão sem decisão é crime de Estado.
A liberdade não pode depender da sorte deve depender da lei, da Constituição e do compromisso ético de quem as aplica.
Samuel Costa Menezes é rondoniense, advogado criminalista, professor e especialista em ciência política.


