O desembargador do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) Kassio Nunes Marques, indicado para o cargo de ministro do STF (Supremo Tribunal federal) pelo presidente Jair Bolsonaro, autorizou uma estrada dentro de uma unidade de conservação em Rondônia em março de 2014.
Seis anos depois, o desmatamento explodiu no Parque Estadual de Guajará Mirim e a estrada é considerada um vetor para invasões de grileiros de terras, madeireiros e até de narcotraficantes. O desmatamento saiu de 0,22 km², em 2013, para 2,79 km² em 2014, primeiro ano da abertura da estrada.
O número veio num crescendo até atingir 22,56 km² em 2017; depois caiu para 15,23 km² em 2018 e 13,57 km² em 2019, de acordo com dados da organização não governamental Ecoporé com base em informações do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
O magistrado tomou a decisão poucos dias depois que o governo de Rondônia, diversos políticos do estado e a então presidente Dilma Rousseff (PT) defenderam a abertura da estrada sob o argumento de que seria apenas temporária e no contexto de uma emergência provocada pela enchente que atingiu Rondônia naquele ano.
A decisão contrariou várias manifestações do MPF (Ministério Público Federal) e de ambientalistas. Eles apontavam que o argumento da enchente era apenas um pretexto para as forças políticas do estado aumentarem a pressão sobre o parque, o que vinha ocorrendo desde os anos 90. Uma juíza federal chegou a ser ameaçada de morte depois que impediu a passagem da rodovia.
A decisão do desembargador também foi no sentido contrário de uma liminar de um colega seu, o então presidente do tribunal, desembargador Mário César Ribeiro, que poucos dias antes havia proibido a obra a pedido do MPF. Ele era o plantonista no Carnaval no TRF-1. Com o fim do feriado, Kassio Marques assumiu a relatoria do caso e autorizou a construção emergencial da estrada. Em poucos dias ela foi aberta a toque de caixa pelo governo estadual.
Procurado pela coluna, do gabinete do desembargador informou, por meio da assessoria do TRF-1, que “devido à enchente na bacia hidrográfica que forma o Rio Madeira, as populações das cidades de Guajará-Mirim (RO), Nova Mamoré (RO) e Nova Dimensão (RO) ficaram isoladas por via terrestre”. Segundo o gabinete, “a preservação do meio ambiente é uma imposição constitucional que a todos obriga. Mas o direito à vida, a liberdade e à saúde do ser humano também são garantias constitucionais que impõem uma jurisdição positiva a favor da sua preservação”.
‘Virou um caos depois da estrada’, aponta biólogo
Em maio passado, cerca de 50 pessoas encapuzadas emboscaram uma equipe que fazia fiscalização, com apoio da Polícia Militar Ambiental, contra as invasões no parque. Em 2017, outra equipe da Polícia Militar sofreu uma emboscada e foi recebida a tiros.
“Já tem até lotes cortados, estradas secundárias abertas. Virou um caos depois da estrada. Existiam pressões, mas eram mais veladas. Havia furto de madeira, que era combatido com fiscalizações, mas não tinha lotes lá dentro. Depois da estrada, pipocou. Há venda de terras lá dentro. Eles vão grilando, marcando lotes e e vendendo a preço de banana”, diz o presidente da organização não governamental Ecoporé (Ação Ecológica Guaporé), o biólogo Paulo Henrique Bonavigo.
“Essa estrada desde 1995 era promessa de qualquer campanha, qualquer governador, qualquer prefeito que entrava já falava em abrir a estrada”, afirma Bonavigo, que foi coordenador de Unidades de Conservação da Sedam (Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia).
Planos para abrir a estrada vêm desde os anos 90A pretensão das forças políticas de Rondônia de cortar o parque começou ainda nos anos 90, mas foi freada por uma decisão da 5ª Vara Ambiental e Agrária de Porto Velho a pedido da Ecoporé e do MPF.A liminar depois foi confirmada em sentença. As pressões continuaram, mas as decisões judiciais foram mantidas até a enchente de 2014.O governo de Rondônia argumentou que, como a cheia interditou a rodovia BR-264, que liga Porto Velho a Guajará-Mirim (RO), era imprescindível abrir um ramal de 11,5 km dentro do parque. Uma lei foi aprovada na Assembleia Legislativa e uma comitiva esteve em Brasília.
Dilma apoiou a obra, rapidamente autorizada pelo então desembargadorNo dia 15 de março de 2014, o lobby pela estrada ganhou o apoio poderoso da então presidente da República, Dilma Rousseff — ela foi também a responsável pela nomeação de Kassio Marques no TRF-1, dentro da vaga do chamado quinto constitucional, isto é, uma indicação da advocacia.Após sobrevoar áreas alagadas em Rondônia, Dilma concedeu uma entrevista coletiva ao lado do então governador, Confúcio Moura (MDB), em Porto Velho. Ela disse que vinha acertando com o governo local uma série de medidas e prometeu mobilizar o então advogado-geral da União, Luís Adams.
“Uma das principais medidas foi a estrada parque. A estrada parque, ela é a condição, sendo liberada, para que haja uma redução do isolamento, tanto do Acre como de comunidades aqui do estado de Rondônia. E o governo federal se comprometeu a colocar o nosso ministro Adams, que é da Advocacia-Geral da União, para também deixar claro que é do interesse da União essa liberação, porque ela visa a melhorar as condições de atendimento, as condições de assistência e o fato de que também isso vai significar que bens como alimentos, como combustíveis, vão chegar mais rápido, tanto no Acre como aqui, nas comunidades, em Rondônia”, disse Dilma. Dois dias depois das declarações de Dilma, o desembargador Kassio Marques autorizou a obra.
“Verdadeiro crime ambiental”, disse procuradora
Os argumentos do MPF foram vencidos pela decisão. A então procuradora regional da República que atuava junto ao TRF-1, Raquel Branquinho, que anos depois trabalharia na equipe da Operação Lava Jato na PGR (Procuradoria-Geral da República), advertiu que “há fortes e escusos interesses na abertura da estrada, que já havia sido feita por 10 km, ‘clandestinamente’, eis que com máquinas do poder público, sem EIA-RIMA [estudo de impacto ambiental], com assoreamento comprovado de igarapés, destruição da fauna e da flora”.
Raquel apontou que, “em ano eleitoral”, a enchente do rio Madeira “está sendo usada como falso motivo para os interesses que sempre estiveram presentes”.
Ela afirmou ainda que havia rotas alternativas de ligação entre as cidades atingidas e que aviões do Exército ajudavam no abastecimento. Para criar um clima favorável à estrada, disse a procuradora, os interessados nas invasões ao parque “na semana passada iniciariam ações clandestinas de destruição da rota alternativa, justamente para forçar a ‘necessidade’ da abertura da estrada pelo Parque. As ações foram contidas pela PM e pela PF, que solicitaram reforço à capital”.
Fonte: UOL Noticias