Para muitas famílias atingidas pela enchente do rio Madeira, denominada como histórica, o resultado pode ser resumido em uma única palavra: tragédia. “Só não foi pior porque não perdemos a vida”, disse a jovem senhora Amanda Cruz, da localidade de São Miguel, no médio Madeira, grávida de quadro meses e mãe de outras duas crianças, ela está refugiada na Escola Quatro de Janeiro, em Porto Velho, e divide uma sala com mais oito membros da família.
São mais de 40 escolas que estão funcionando como abrigos em Porto Velho, além do Ginásio Cláudio Coutinho que poderá receber nesta quarta-feira (12) as mais de 40 famílias que estão nas Escolas Castelo Branco e Duque de Caxias, há cerca de um mês. Nas escolas, servidores municipais e estaduais se revezam em turnos mantendo a ordem nas escolas, supervisionando cozinhas, quando comunitárias, limpeza e lavanderia. “Aqui a rotina é diferenciada do que eles vivem comumente nos lugares onde moram”, explicou Tânia Guedes.
As histórias de cada desabrigado acabam com o mesmo final: a surpresa de uma enchente tão arrasadora que obrigou pelo menos cinco mil pessoas a deixarem suas moradias e se abrigarem em casa de familiares ou em abrigos públicos.
Escola Duque de Caxias
Assim é a história de dona Francisca Braga, moradora do São Sebastião, nas proximidades do Posto Fiscal, na Avenida dos Imigrantes. Ela contou que como em anos anteriores, quando a água começou a se aproximar de casa, buscou abrigo na paróquia da comunidade, mas doze dias depois precisou ir para a Escola Duque de Caxias, porque as águas também ameaçavam a igreja.
Moradora no bairro, desde quando se chamava Balsa, dona Francisca disse que a esperança de logo retornar para casa era tanta que nem tirou tudo de dentro da casa, mas à medida que ia se surpreendendo com a marca da água nas paredes, achou melhor retirar algumas coisas, mas ainda assim perdeu guarda-roupa, cama, sofá, uma tevê e até o rack que acabara de comprar. “A gente conseguiu colocar muita coisa no alto, só que a água alcançou”. A pensionista disse que agora é só esperar para ver o que vai acontecer, “não podemos ir contra Deus, ele sabe de tudo que está acontecendo”, desabafou, confiando na fé.
Além de dona Francisca, sua filha e vizinha Tatiana também está desabrigada. “O meu marido tirou logo tudo de casa e deixou na casa de um parente assim só perdemos o sofá e o armário, o resto tá tudo guardado”. Tatiana e dona Francisca só não sabem se poderão voltar a morar no mesmo endereço, é que a força da correnteza já destruiu parcialmente as casas de madeiras de ambas, levando parte das paredes rio abaixo. Pelo menos foi o que constataram ao visitar o local no final de semana. “Tá muito feio por lá e deu muita tristeza ver a minha casa sendo destruída”, salientou a viúva.
Magno Rodrigues e a mulher Ivone Bezerra estão unidos na batalha da sobrevivência. O casal mora no Beco Gravatal, no antigo bairro dos Milagres. Ele presta serviço nas redondezas, trabalhando com carga e descarga de caminhões e carretas, e também foram iludidos pelas chuvas de anos anteriores. “A gente já morava lá há mais de 13 anos e como em outras enchentes, colocamos tudo que foi possível pra cima, só que desta vez não deu certo, a água veio e tomou conta de tudo”. Na pressa de reunir objetos importantes, Magno conta que seus documentos acabaram ficando para trás e hoje nem documento tem. O prejuízo só não foi maior porque como estava resolvendo pendências do Bolsa Família, os documentos dos filhos e da esposa estavam na bolsa. “A primeira coisa que eu fiz foi pegar a bolsa, nossa sorte porque as certidões de nascimento estavam nela”, disse Ivone.
A sala de aula improvisada virou a casa da família, que reúne além do casal, dois filhos adolescentes e dois pré-adolescentes. A mesa de madeira e as cadeiras vieram de casa, mas o guarda roupa já foi uma aquisição nova da família. “Nossas roupas estavam jogadas, não tinha onde guardar e já que perdemos o móvel lá de casa, resolvemos comprar esse aqui”, destacou a moradora. Segundo ela, o momento não é o melhor para fazer dívidas, mas o armário era necessário. A sala é equipada com muitas lâmpadas, central de ar e ventiladores. “A gente tem que dar graças a Deus, porque estamos num paraíso, tem muita gente por aí em pior situação”.
O marido diz que “ainda não caiu a ficha. Só vejo que é real quando passo por lá e vejo a nossa casinha se acabando dentro da água”. Magno e Ivone, além de dona Francisca e Tatiane não estão sozinhos na triste jornada, com eles estão mais de 50 pessoas” na Escola Duque de Caxias, muitas sem saber o que será da vida quando as águas recuarem.
Escola Estudo e Trabalho
Ana Lúcia Freire, moradora da rua Jaci Paraná, no Mocambo, disse que resistiu o quanto pôde para buscar refúgio no abrigo da Escola Estudo e Trabalho, no bairro Areal. “Só saímos quando não tinha mais sentido permanecer com as crianças naquele lugar”. A família de Ana Lúcia foi a segunda a se instalar na escola. O que trouxe foi salvo, o que deixou para trás, já deu por perdido. “A água está passando da janela, o que tem lá dentro não presta mais”, sentenciou.
Ana Lucia trabalha com venda de lanche e o marido faz limpeza em quintais e ambos estão parados. Do futuro ela espera tudo, uma vez que acha muito difícil poder morar no mesmo lugar. “Eu passo lá e vejo tudo destruído e o pior é que nós não temos onde morar”.
Sem direito a privacidade, José Edilamar é aposentado, a cerca de dois anos teve uma das pernas amputadas em função do descontrole do diabetes. Com mais de 50 anos, ele acabou tendo que assumir a criação dos dois filhos de quatro e seis anos e divide a sala da escola Estudo e Trabalho com a família de Ana Lucia. Devidos às limitações acaba sendo socorrido pelos novos amigos e vizinhos. Ele é, possivelmente, o desabrigado mais antigo da capital. Contou que morava no São Sebastião até o ano passado, mas depois da enchente sua moradia foi condenada pela Defesa Civil. Começou a receber do poder público municipal uma ajuda de custo de R$ 180,00 para pagar o aluguel. Foi morar no bairro Nacional, onde conseguiu um imóvel por R$ 300,00, mas novamente foi expulso de casa por causa da enchente. “Alagou tudo e estou na mesma situação sem casa, sem móveis, sem nada”.
Escola Quatro de Janeiro
Nove pessoas de uma mesma família, entre elas três crianças, saíram há pouco mais de um ano da localidade de São Sebastião do Uatumã, no interior do Amazonas. O destino foi a comunidade Aliança, nas imediações de São Carlos, região ribeirinha de Porto Velho. O objetivo era acompanhar o marido de Tereza Brito, um carpinteiro, especializado na fabricação de canoas. A mudança, segundo Tereza, ficou em Humaitá, onde alugaram uma casa e todos seguiram para a Aliança, e se instalaram em um prédio público (o posto de saúde). Para socorrer os primeiros desabrigados do lugar, a família teve que buscar outro refúgio, mas segundo Tereza foi por poucos dias, porque em seguida todos foram removidos pela Defesa Civil para Porto Velho e instalados na Escola Quatro de Janeiro. “Não tinha mais onde a gente ficar”. Os móveis em Humaitá se perderam, porque a casa ficou alagada e a família chegou a Porto Velho praticamente com a roupa do corpo.
“Ficamos rodados”, resume Tereza, usando um termo popular. “Agora vamos ter que trabalhar pra voltar para São Sebastião do Uatumã e continuar a vida por lá, onde pelo menos temos uma casa”.
Maria Helena Ferreira, tia de Amanda disse que não está sendo fácil, pois tinha uma vida com muitas atividades em casa e na roça. Segundo ela, que mora em São Miguel há 24 anos, nunca houve tamanha enchente no lugar. “Meu marido preparou umas marombas (uma espécie de estrado flutuante feito com madeira para salvar objetos e animais) mas não adiantou nada. A água invadiu tudo com muita força e tivemos que deixar nossa casa”.
Texto: Alice Thomaz
Fotos: Marcos Freire