Por Vinício Carrilho Martinez
Professor Associado IV da Universidade Federal de São Carlos
Por Tainá Reis
Doutora em sociologia pela Universidade Federal de São Carlos
O racismo não tem limites – além daqueles que possamos colocar com punição e educação –, não tem fronteiras. O racismo vive aqui no Brasil, aí ao seu lado, toda vez que abrir a janela você verá, bem como a luta de classes e a luta antirracista. Em certos contextos, ganha dimensões épicas, entre a xenofobia e o genocídio programado.
A xenofobia está na Palestina, de mãos dadas com o genocídio e os crimes contra a Humanidade – cometidos pelo Estado de Israel, nas ações absolutamente desproporcionais e mortíferas contra a Faixa de Gaza.
O racismo está em todo o tecido nacional, é capaz de migrar tranquilamente do famoso “quartinho da empregada” (pensamento escravista, resquício abjeto da Casa Grande & Senzala, na inconsciência das classes remediada) até se ocupar em franca manifestação nas hostes de poder. Porém, também no escopo dos Grupos Hegemônicos de Poder podemos visualizar claramente a luta contra o pensamento escravista[1]: esse comportamento classista, racista que procura a “naturalização” do trabalho análogo à escravidão, a uberização, a pejotização.
Com esse espírito em mente, hoje traremos uma resposta histórica, construída socialmente, permeando toda a cultura (até se tornar a primeira pele), para juntos pensarmos tanto a Palestina quanto o racismo nacional – ou racial-fascismo[2].
Trata-se do Ubuntu[3].
Ubuntu é um poderosíssimo remédio político-jurídico: resistência, ação, luta, consciência, emancipação, ajuizamento, consciência.
Ubuntu é super-ação: ação para a radical mudança social, é o germe da racionalidade no âmago da inteligência coletiva. Ubuntu é ética e práxis.
Portanto, Ubuntu para a Palestina implica no combate ao racismo em todo e qualquer lugar. Ubuntu é a luta acesa contra a Xenofobia, o Fascismo, o sionismo de Estado, o antissemitismo.
Ubuntu é a justiça histórica (emancipação e indenização) e a justiça restaurativa: punição, ressocialização, reconciliação. Foi retomado pelos sul-africanos para lidar com a política de apartheid no país (1948 a 1994). Esteve na Constituição Provisória de 1993 e está na lei sobre a Promoção da Unidade Nacional e da Reconciliação do país.
Habermas fala algo nessa linha, como o ideal (construído) de democracia consensual, conciliatória. O que a mais velha tradição da Teoria Política também definiria como a Política: a Polis em que se faz política negociando, afirmando-se na tentativa de construção de um mínimo denominador comum, um nível solo abaixo do qual nada seria viável e possível.
Ubuntu é “fazer-se política”, como indivíduo (animal político) e grupo: o ser social. Não se trata do individualismo ocidental, mas da unidade, do coletivismo. Com origem nos povos sul-africanos xhosa e zulu (Cavalcante, 2020), a ética Ubuntu expressa a política como arte: a arte da sociabilidade, da interação, da elevação dos níveis de inteligência social. Ubuntu é a negação da “arte da guerra”.
Linguisticamente, “o termo Ubuntu deve ser tomado como uma palavra hifenizada: Ubu-Ntu. Ubu (prefixo) diz respeito à existência, na sua forma geral, como processo contínuo do ser que se torna constantemente, enquanto ntu (raiz), à existência, na sua forma concreta.” (Dju; Muraro, 2022, p. 243). Então, ubu se trata de um constante movimento, um vir a ser, enquanto ntu é um “ter-se tornado”.
A noção de Ubuntu considera todo ser humano como sendo valor absoluto. Tornar-se indivíduo, tornar-se humano, só é possível em conjunto com outros. “Isso mostra que, na constituição de relação, a identidade e a diferença coexistem, e os outros são constituintes do indivíduo, é a comunidade na qual se insere para se tornar humano. A comunidade e o indivíduo se constituem.” (Dju; Muraro, 2022, p. 248).
Ubuntu é um recado claro contra todos que mitigam a convivialidade, que agridem a humanidade. E, por isso, com a aplicação de penas duras aos sociopatas de todo gênero, número e grau, repondo-se o “dano social”, Ubuntu foi e é o tecido da justiça política restaurativa, é um dos sistemas operacionais mais profícuos da justiça, da democracia e da pacificação social.
Assim é o remédio político-jurídico ideal para todos nós que ansiamos por razoabilidade, racionalidade, proporcionalidade, especialmente na interação entre os jogos e os jogadores do poder.
Se é verdade que quem cala, consente, também é fato não estamos contentes com o antissemitismo e muito menos com o sionismo de Estado, com os crimes contra a humanidade, com a guerra de extermínio e o genocídio promovido na Palestina. Mas, não cremos que mais violência irá sufragar o que já existe.
Defendemos, de outro modo, o Ubuntu.
Porque a política se faz com negociação, conciliação, compromissando-se, e não com mais violência. Na guerra, a única vencedora é a morte, com sua indústria armamentista. Com Ubuntu, vencemos todos. Ubuntu é a “representatividade de um modelo de humanidade, de cultura e da história de uma comunidade” (Cavalcante, 2020, p. 187).
Para os casos do 8 de janeiro, no Brasil dos atentados terroristas (de “coorte” fascista) contra o Estado Democrático de Direito, Ubuntu também se enquadra perfeitamente. Ubuntu, como instrumento ou sistema, é um “ideal programático”. Porém, quando acionado como forma de justiça democrática, é operacional e pragmático. “(…) os princípios fundamentais da ética Ubuntu são norteados pela preocupação com o outro, com a solidariedade, com a partilha e com a vida em comunidade. Assim, uma geoética e uma geofilosofia se apresentam nos fundamentos da filosofia ubuntu, trazendo o ser em sua existência como a essência de uma coletividade” (Cavalcante, 2020, p. 185).
Ubuntu funciona, porque o “fazer-se política” é um caminho inexorável do Humano. Definitivamente, o Ocidente tem muito que aprender com as filosofias e a práxis africana.
Referências
CAVALCANTE, K. L. Fundamentos da filosofia Ubuntu: afroperspectivas e o humanismo africano. Revista Semiário De Visu. Petrolina, v. 08, n. 02, p. 184-192, 2020.
DJU, A. O.; MURARO, D. N. Ubuntu como modo de vida: contribuição da filosofia africana para pensar a democracia. Tras/Form/Ação, Marília, v. 45, p. 239-264, 2022.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo. Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/11/desembargadora-metade-negra-e-metade-indigena-narra-racismo-a-criancas.shtml. Acesso em 09/10/2023.
[2] Martinez, 2020.
[3] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cida-bento/2023/11/por-que-a-guerra-perguntou-einstein-a-freud-em-1932.shtml. Acesso em 09/10/2023.